domingo, fevereiro 06, 2005

Fado Falado

Fado Triste,
Fado negro das vielas,
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar;
Ouve-se a voz,
Voz inspirada de uma raça,
Que mundo em fora nos levou
Pelo azul do mar.
Se o fado se canta e chora
Também se pode falar.

Mãos doloridas, na guitarra
que desgarra, dor bizarra,
Mãos insofridas, mãos plangentes
Mãos frementes e impacientes
Mãos desoladas e sombrias
Desgraçadas, doentias
Quando à traição, ciume e morte
E um coração a bater forte...

Uma história bem singela
Bairro antigo, uma viela,
Um marinheiro gingão
E a Emília cigarreira
Que ainda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
Em dia de procissão
Da Senhora da Saúde;

Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe,
Trazia-os ele do mar,
Eram bravios e salgados,
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinho
Que os sapatos - dele e dela -
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama.

Pela janela da Emília
Entrava a lua
E a guitarra,
À esquina de uma rua gemia,
Dolente a soluçar.
E lá em casa:

Mãos amorosas, na guitarra,
Que desgarra dor bizarra,
Mãos frementes de desejo
Impacientes como um beijo
Mãos de fado, de pecado
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher
Para o despir e para o beijar.

Mas um dia,
Mas um dia santo Deus, ele não veio...
Ela espera olhando a lua, meu Deus
Que sofrer aquele...
O luar bate nas casas
O luar bate na rua
(mas não marca)
Mas não marca a sombra dele.


Procurou como doida
E ao voltar da esquina
Viu ele acompanhado
Com outra ao lado, de braço dado
Gingão, feliz, levião
Um ar fadista e bizarro
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
O que resta de um cigarro.

Lume e cinza na viela,
Ela vê, que homem aquele...
O lume no peito dela
A cinza no olhar dele.

(e então...)

E o ciume chegou como lume
Queimou, o seu peito a sangrar.
Foi como vento que veio
Labareda atear, a fogueira aumentar.
Foi a visão infernal
A imagem do mal que no bairro surgiu.
Foi o amor que jurou
Que jurou e mentiu.
Correm vertigens num grito
Direito ou maldito que há-de perder.
Puxa a navalha, "canalha
Não há quem te valha
Tu tens de morrer".
Há alarido na viela
Que mulher aquela
Que paixão a sua;
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua.

Mãos carinhosas, generosas
Que não conhecem o rancor;
Mãos que o fado compreende
me entendem sua dor;
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos para acarinhar;
Mãos que brigam, que castigam
Mas que sabem perdoar.

E pouco a pouco o amor regressou,
Como lume queimou
Essas bocas febris,
Foi um amor que voltou
E a desgraça trocou
Para ser mais feliz,
Foi uma luz renascida
Um sonho, uma vida
De novo a surgir,
Foi um amor que voltou
Que voltou a sorrir.

(Ah!)
Há gargalhadas no ar,
E o sol a vibrar
Tem gritos de cor,
Há alegria na viela,
E em cada janela
Renasce uma flor,
Veio o perdão e depois
Felizes os dois
Lá vão lado a lado
...
E digam lá se pode ou não
Falar-se o fado.


Aníbal Nazaré / Nelson de Barros