domingo, abril 10, 2005

Viajando pela Cidade e as Serras

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E apenas pela porta desaparecera a esplêndida aparição.

-Ó Jacinto, eu daqui a um instante também quero água! E se compete aesta rapariga trazer as coisas, eu, de cinco em cinco minutos, quero uma coisa!... Que olhos, que corpo... Caramba, menino! Eis a poesia, toda viva, da serra...

O meu Príncipe sorria, com sinceridade:

-Não! não nos iludamos, Zé Fernandes, nem façamos Arcádia. É uma bela moça, mas uma bruta... Não há ali mais poesia, nem mais sensibilidade, nem mesmo mais beleza do que numa linda vaca turina. Merece o seu nome de Ana Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, concebe bem. Para isso a fez a Natureza, assim sã e rija; e ela cumpre. O marido todavia não parece contente, porque a desanca. Também é um belo bruto... Não, meu filho, a serra é maravilhosa e muito grato lhe estou... Mas temos aqui a fêmea em toda a sua animalidade e o macho em todo o seu egoísmo... são porém verdadeiros, genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé Fernandes, é para mim um repouso.

Lentamente, gozando a frescura, o silêncio, a liberdade do vasto casarão, retrocedemos à sala que Jacinto já denominara a Livraria. E, de repente, ao avistar num canto uma caixa com a tampa meio despregada, quase me engasguei, na furiosa curiosidade que me assaltou:

-E os caixotes? Ó Jacinto?... Toda aquela imensa caixotaria que nós mandamos, abarrotada de Civilização? Soubeste? Apareceram?

O meu Príncipe parou, bateu alegremente na coxa:

-Sublime! Tu ainda te lembras daquele homenzinho, de saco a tiracolo, que nós admiramos tanto pela sua sagacidade, o seu saber geográfico?... Lembras? Apenas falei em Tormes, gritou que conhecia, rabiscou uma nota... Nem era necessário mais! “Ó! Tormes, perfeitamente, muito antigo, muito curioso!” Pois mandou tudo para Alba de Tormes, em Espanha! Está tudo em Espanha!

Cocei o queixo, desconsolado:

-Ora, ora... Um homem tão esperto, tão expedito, que fazia tanta honra aoprogresso! Tudo para Espanha!... E mandaste vir?

-Não! Talvez mais tarde... Agora, Zé Fernandes, estou saboreando esta delícia de me erguer pela manhã, e de ter só uma escova para alisar o cabelo.

Considerei, cheio de recordações, o meu amigo:

-Tinhas umas nove.

-Nove? Tinha vinte! Talvez trinta! E era uma atrapalhação, não mebastavam!... Nunca em Paris andei bem penteado. Assim com os meus setenta mil volumes: eram tantos que nunca li nenhum. Assim com as minhas ocupações; tanto me sobrecarregavam, que nunca fui útil!
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Eça de Queiroz