terça-feira, fevereiro 08, 2005

Os cromos

Desde pequeno que os cromos me perseguem... são cromos por toda a parte e, a única diferença é que, quando eu era puto pagava para os ter e agora quase que pago para que não me apareçam à frente.

Como dizia eu e a minha cara amiga Sónia, fazem agora já alguns anos: …mas temos que os aceitar... os cromos são humanos e têm sentimentos...


Quando era puto, sempre me meteu um pouco de impressão a vida de um cromo e a competição que existe entre eles. Deve ser uma vida impressionante ter que lutar pelo lugar do "o mais cromo" ou ainda pior, o lugar do "o que mais vezes sai" ou o de "o mais difícil", ou ainda o de "o mais leiloado no Miau e/ou no Gaydar" ou "o mais fashion"... Cromos!


Como em todas as espécies (de cães, de bovinos, de pulgas), a dos cromos também se divide em diferentes raças... E qual será a melhor raça de cromos? Será a dos que têm todas as informações sobre eles escritas nas costas, a dos que são necessários serem escarrados por trás para colarem ou a daqueles que depois de rasgada a parte traseira colam automaticamente?...

É uma questão pertinente... Contudo, os que têm as informações escritas nas costas (e que normalmente são os mais baratos) mesmo assim, talvez sejam os melhores... e por duas razões: 1º - se não souberes quem é basta dizeres "ora dá uma voltinha!" que consegues logo ler nas costas de quem se trata; 2º - por muito que o cuspas, que o rasgues ou que ele se tente encostar demais, estes são os únicos cromos que não colam, sem antes serem untados com goma-arábica...

Acho que um dos grandes problemas dos cromos é mesmo o facto de necessitarem avidamente de se colarem... e é a tal coisa... Sónia: eu sei que até é possível que eles tenham sentimentos mas é dose...

... E os sentimentos de cromos é que são uma enorme dose... e isto em qualquer uma das raças de cromos... quando lhes dá para o sentimento não existe quem aguente...

Eu tenho quase a certeza que é impossível que um cromo não se ache cromo!... Acho até que a maioria sabe que é cromo; por exemplo: quando vemos um cromo a dizer "eu sou fashion" nada mais está a dizer se não "eu sou cromo"... Aí deveremos colocar logo o pé atrás, ficar com cautela a observar qualquer movimento menos correcto por parte dele, e ir averiguando de que tipo de cromo se trata.

Os cromos mais difíceis de serem identificados como da raça a que pertencem são os que se tornam autocolantes depois de molhados... confesso que é necessário olho clínico e muito cuidado para com este tipo de cromos...

Aparece-nos vindos do nada, com um ar lambido de filme trash dos anos 80 mas auto intitulando-se como sendo fashion e depois começa o problema... uma pessoa pede-lhe para dar uma voltinha e ele nada tem escrito nas costas, uma pessoa começa então a ficar preocupada e evita a abordagem traseira... Contudo o cromo tem uma predilecção para nos mostrar ou a marca das calças, ou a cor dos boxers aos quadradinhos, ou o desenvolvimento do pump up the butt...

Normalmente a identificação da marca das calças ou da cor dos boxers faz-se a partir de uma instalação criada para o efeito, onde o corpo do cromo se espalma contra uma qualquer parede ou coloca as mãos no chão para apanhar o anel (de um dos dedos da sua mão) que deixou "ups" cair ao chão. Mas não é sempre assim... Existem cromos que utilizam o "método da braguilha".

O "método da braguilha", muito utilizado desde o final dos anos 70, consiste em não efectivar o fecho do fecho das calças depois de ter feito a sacudidela do pénis para o chão mesmo em frente do urinol. Depois, quando está em frente da pessoa a quem se querem colar, o cromo coloca as mãos nos bolsos e gesticula consoante os grunhidos guturais que vai soltando. Normalmente, o gesto obvio (e mais utilizado) consiste em colocar as mãos abertas dentro dos bolsos da frente das calças, esticar muito os dedos, e efectuar movimentos sincronizados com as mãos, por exemplo, quando a ponta dos dedos da mão esquerda vão para a esquerda, os da direita vão para a direita... e etc. e tal...

Mas estava eu a falar da dificuldade que se sente com os ditos cromos da raça "autocolantes após molhados" que, daqui para a frente tratarei, por simplicidade de escrita como "auto molhados".

Como estava a dizer, é necessário um cuidado redobrado com os "auto molhados" pois a busca de humidade por partes destes é enorme... E nos dias que correm em Portugal, com uma ausência de dias chuvosos, a cromalhada "auto molhada", desculpem a expressão mas penso ser a mais leve que me ocorre de momento: anda com o pito aos saltos.

"É Carnaval!... Ninguém leva a mal"... e lá vai a cromalhada "auto molhada" à procura de quem os escarre as costas...

Nesta altura a raça que costuma ficar menos exposta é a raça "rasga-me que me torno autocolante"... Nesta altura do ano, após o período da Passagem de Ano, o cromo do "rasga-me" (abreviemos assim) normalmente ainda continua com o sujeito a quem se colou durante o Reveillon... Normalmente quem costuma iniciar o ano colado a um cromo "rasga-me" é sempre outro cromo do tipo "rasga-me"... e tem lógica: é muito difícil separar dois cromos do tipo "rasga-me" pois depois de ambos rasgados são cola ao cubo!... É mesmo das separações mais difíceis de efectuar de todo o tipo de cromos e, felizmente para a humanidade, enquanto juntos a outro cromo não colam em mais ninguém... A não ser passados alguns meses...

Passados alguns meses de uma união de dois cromos do tipo "rasga-me" começam a aparecer pequenas fissuras na parte frontal de cada um deles, de onde a matéria colante começa a jorrar. Normalmente este fenómeno ocorre no início da primavera, quando as passarinhas começam a povoar de novo os poleiros e o cheiro miasmático dos novos perfumes da Cacharel iniciam o processo de infestação dos espaços púbicos/pudicos/públicos.

Nessa altura do ano, os espaços púbicos/pudicos/públicos começam a parecer autênticas cadernetas, umas com cromos muito arrumados, outras com os ditos ainda em carteirinhas, outras ainda com fulanos organizados por folhas mas ainda sem terem sido colados (normalmente este último tipo são as cadernetas de cromos com inscrições na parte traseira (chamemos-lhes os "traseiros") pois é um crime, por um lado, perder a única informação que interessa (que está na escrita nas costas) e gastar goma-arábica cujo o cheiro não compensa).

Eu prefiro os locais em que eles se encontram ainda dentro das carteirinhas. Mas, mesmo nesses locais é necessário um cuidado extremo... Desculpem-me, eu sei que eles são gente, são humanos e têm sentimentos mas só o sonhar que uma daquelas carteirinhas se pode rasgar e voarem lá de dentro montes de cromos é uma visão totalmente dantesca... Imaginem só que podem até sair cromos repetidos!... A ideia é terrível!

Se não és cromo tem cuidado... nunca coloques a língua directamente num cromo! Usa, no mínimo, um preservativo!... Ou então, deixa-te disso... como diz o outro, os cromos já não são o que eram!...

Teseus

domingo, fevereiro 06, 2005

Fado Falado

Fado Triste,
Fado negro das vielas,
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar;
Ouve-se a voz,
Voz inspirada de uma raça,
Que mundo em fora nos levou
Pelo azul do mar.
Se o fado se canta e chora
Também se pode falar.

Mãos doloridas, na guitarra
que desgarra, dor bizarra,
Mãos insofridas, mãos plangentes
Mãos frementes e impacientes
Mãos desoladas e sombrias
Desgraçadas, doentias
Quando à traição, ciume e morte
E um coração a bater forte...

Uma história bem singela
Bairro antigo, uma viela,
Um marinheiro gingão
E a Emília cigarreira
Que ainda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
Em dia de procissão
Da Senhora da Saúde;

Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe,
Trazia-os ele do mar,
Eram bravios e salgados,
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinho
Que os sapatos - dele e dela -
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama.

Pela janela da Emília
Entrava a lua
E a guitarra,
À esquina de uma rua gemia,
Dolente a soluçar.
E lá em casa:

Mãos amorosas, na guitarra,
Que desgarra dor bizarra,
Mãos frementes de desejo
Impacientes como um beijo
Mãos de fado, de pecado
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher
Para o despir e para o beijar.

Mas um dia,
Mas um dia santo Deus, ele não veio...
Ela espera olhando a lua, meu Deus
Que sofrer aquele...
O luar bate nas casas
O luar bate na rua
(mas não marca)
Mas não marca a sombra dele.


Procurou como doida
E ao voltar da esquina
Viu ele acompanhado
Com outra ao lado, de braço dado
Gingão, feliz, levião
Um ar fadista e bizarro
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
O que resta de um cigarro.

Lume e cinza na viela,
Ela vê, que homem aquele...
O lume no peito dela
A cinza no olhar dele.

(e então...)

E o ciume chegou como lume
Queimou, o seu peito a sangrar.
Foi como vento que veio
Labareda atear, a fogueira aumentar.
Foi a visão infernal
A imagem do mal que no bairro surgiu.
Foi o amor que jurou
Que jurou e mentiu.
Correm vertigens num grito
Direito ou maldito que há-de perder.
Puxa a navalha, "canalha
Não há quem te valha
Tu tens de morrer".
Há alarido na viela
Que mulher aquela
Que paixão a sua;
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua.

Mãos carinhosas, generosas
Que não conhecem o rancor;
Mãos que o fado compreende
me entendem sua dor;
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos para acarinhar;
Mãos que brigam, que castigam
Mas que sabem perdoar.

E pouco a pouco o amor regressou,
Como lume queimou
Essas bocas febris,
Foi um amor que voltou
E a desgraça trocou
Para ser mais feliz,
Foi uma luz renascida
Um sonho, uma vida
De novo a surgir,
Foi um amor que voltou
Que voltou a sorrir.

(Ah!)
Há gargalhadas no ar,
E o sol a vibrar
Tem gritos de cor,
Há alegria na viela,
E em cada janela
Renasce uma flor,
Veio o perdão e depois
Felizes os dois
Lá vão lado a lado
...
E digam lá se pode ou não
Falar-se o fado.


Aníbal Nazaré / Nelson de Barros